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sábado, 18 de outubro de 2014

Outubro Rosa e meu primeiro grande choque na Holanda

Era um dia de primavera na Holanda, o sol brilhava lá fora e por isso eu aproveitara para passear com o bebê Johann que deveria ter entre 6 e 8 meses. Enquanto estavámos indo e vindo andando na calçada do quarteirão de casa, a nossa vizinha da sexta casa depois da nossa, abre a porta e andando muito debilitada,  devido a metástase de um câncer que iniciou nos seios, que segundo ela , há algum tempo atrás, veio em nossa direção, pediu para ver o bebê, brincou com ele e falou pra mim. - você parece ser uma pessoa muito gentil, eu gostaria de ter mais tempo para a gente tomar um café juntas e podermos conversar mais... tenho tanta curiosidade de saber como é o Brasil de falar sobre as crianças.. bom, o meu filho já está bem crescido, mas nunca deixará de ser criança.

Na ocasião eu respondi, que teríamos sim tempo para tomarmos café, e para ficarmos horas e horas falando das crianças, e aproveitei para dizer que lamentava muito por ela está doente e que nossa casa estaria de portas abertas a qualquer hora do dia ou da noite para qualquer coisa que ela precisasse. Ela pegou minha mão e agradeceu, disse para eu ser muito feliz e que cuidasse muito bem do meu marido e dos meus filhos porque no final é tudo que nós resta da vida. Depois se despediu dizendo que iria ajudar a preparar o jantar para a família e entrou, e eu continuei andando até que soprou uma brisa fria e também decidi voltar pra casa.

Quando foi por volta de sete e meia da noite, uma ambulância seguida do carro da polícia passaram em frente de casa, apenas com as lâmpadas sinalizando, sem barulho algum, sirenes desligadas e pararam na porta da casa dela, o meu marido viu e imediatamente fechou a persiana da janela que dá para rua me olhou e disse; - isso não é nada bom! 

No dia seguinte, ao sair novamente para passear com o Johann, a vizinha do outro lado da rua, passeava como os cahorros e me abordou falando sobre o dia, o sol.. me alertou para vestir um casaco mais grosso no bebê pois embora fizesse um dia lindo a qualquer hora poderia ter um vento frio e na sequência perguntou se iria tomar café na casa da nossa vizinha que havia falecido na noite anterior. Mas falando tão naturalmente, como se fosse uma visita de boas vindas, ou sei lá..visita ocasional...  Como assim? perguntei assustada.

Foi então que ela me contou que a nossa vizinha havia retirado os dois seios, a doença havia se alastrado tão rapidamente, mesmo fazendo o tratamento em casa ela estava sofrendo muito, com muita dor e por isso decidiu aliviar esse sofrimento, não por ela, mas por amor ao  marido e ao filho que não conseguiam vê-la sofrer tanto. E ontem fora a data escolhida para ir embora, optando assim pela eutanásia. (A Holanda foi um dos primeiros países a legalizar a eutanásia em  doentes em estágio terminal, que era o caso da nossa vizinha).
Naquele finalzinho de dia ela havia ajudado o marido com o jantar, jantou com a família, depois recebeu os parentes mais próximos para o último café, foi quando pontualmente as sete e meia da noite chegaram os médicos acompanhados por um agente da polícia, subiram com ela para o quarto enquanto a família permanecia em reunião na sala, depois do procedimento desceram, deram condolências à família e foram embora.
Em estado de choque  eu ouvia tudo atenciosamente... uma lágrima desceu dos olhos dando- me conta que nossa conversa  do dia anterior, que parecia casual na verdade era uma despedida... só Deus sabe o quanto eu lamentei pelo café que não tomamos, pelas conversas que não tivemos e por tudo que poderíamos vivenciar como vizinhas...

Confesso que esse foi meu primeiro grande choque cultural, compreendo isso como cultural, embora muita gente considere o assunto diretamente relacionado à religião. Mas quem mora aqui vai concordar em parte comigo que não tem nada haver em acreditar ou não em Deus e sim com outras coisas que é meio difícil de explicar por isso eu prefiro classificar como cultural para não entrar em conflito até comigo mesma, católica, devota de Nossa Senhora de Nazaré e crente em Deus. Mas Como diz meu marido, na Holanda se pensa com a razão e não com a emoção... e religião, segundo ele, é puramente emoção!

Mas até hoje quando lembro dessa vizinha, imediatamente oro por ela.. peço a Deus e Nossa Senhora que lhe tenha dado a paz e que sempre conforte aos que ficaram e sempre me vem a imagem dela tirando a neve da frente da casa, sorrindo e acenando pra mim!

Porém, essa história me serviu de alerta para a prevenção do Câncer de mama aqui, para a  importância do diagnóstico precoce, pois pasmem, embora morando em um país que trabalha com a medicina preventiva, os diagnósticos de câncer de mama ainda são tardios e preocupantes na Holanda. 
Sendo assim, quantos cafés, quantas conversas deixarão de ser vivenciados por causa desse triste diagnóstico. Portanto, Previna-se!

Dedico este post à memória da doce vizinha Marel.
E todos envolvidos na campanha  outubro rosa!







Um comentário:

  1. Emocionante esse seu relato. Esse lado prático do holandês, o pensar com a razão, ainda me causa certo estranhamento. Eu imagino que tomar a decisão da eutanásia requer muita coragem. Permanecer lutando, mesmo sabendo do fim, quase que com data marcada, também demanda "ser um cabra macho".
    Meu pai morreu também em decorrência do cancêr, mas a passagem dele foi tranquila (dormindo), e eu digo isso porque eu estava ao lado dele. Se alguma outra pessoa tivesse me contado a maneira e como ele estava quando deu o último suspiro, eu não teria acreditado. Eu pensaria que era uma história só para me consolar...
    A minha sogra resolveu permanecer junto da família (assim como o meu pai)...Foi então que eu entendi o significado de "terminal". Até então eu só ouvia falar, "o fulano é terminal", mas eu nunca havia vivenciado isso de perto, muito perto. É de partir o coração. Para o doente e para a família pode ser traumático.
    Depois dessa experiência eu tento me cuidar e peço ao papai do céu que me dê muitas dezenas de anos á frente e que de preferência, me livre de ter que fazer uma escolha dessas!


    Moema

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